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O “Fluxograma de Marillac” e a economia de Francisco


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Por Amyra El Khalili

Ela queria ser santa. Desde menina, a vocação para a vida religiosa clamava em sua alma. Irmã Maria do Carmo Costa foi referência para muitas comunidades por sua sabedoria e serenidade, principalmente na hora de sua morte. Por convicção, acreditou na medicina alternativa, nas plantas medicinais e nas terapias herdadas dos povos indígenas e tradicionais e com eles aprendidas.

Marillac era seu nome de batismo na Igreja católica. Fundou o Instituto de Educação para a Saúde Integral (Iesai). Como enfermeira religiosa, diretora da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (EEWB) e madre superiora da Congregação das Irmãs de GAP (Itajubá-MG), trabalhou para implementar a cura pela água, pelas terapias preventivas e pela boa alimentação agroecológica.

Antes de falecer, acometida pelo câncer, presenteou-me com um exemplar da Bíblia. Na dedicatória, o recado:

“Minha querida Amyra, o melhor presente para a festa da vida é a Palavra de Deus! Nela você encontrará o que seu coração busca: a paz, a serenidade, o sentido da vida, o Amor Incondicional de Deus! Com carinho e amor, sua tia Ir. Maria do Carmo Costa. 16/07/2004”.

Foi o que fiz: em um momento de profunda angústia, sem saber para que lado seguir nesta caminhada,  resolvi ler a Bíblia sem o apoio de clérigo ou teólogo. Quando comecei a ler o Gênesis, lembrei-me do “Fluxograma de Marillac”.

Maria do Carmo desenhou um fluxograma para explicar as doenças da humanidade no plano material e espiritual e a transformação através da cura. Dizia-me: “Amyra, tudo foi redimido, mas nem tudo foi curado. Cristo caiu no fundo do poço para que todos(as) caiam nele!”.

Para Maria do Carmo, esse Deus não tinha gênero. Era pai/mãe/providência.

O “Fluxograma de Marillac”, como denominei seu gráfico, propunha uma Igreja contemporânea, feminina, materna e compreensiva. Nele, Maria do Carmo criticava duramente a Igreja católica por sua postura patriarcal e conservadora. Para ela, esta é a verdadeira razão pela qual tantos fiéis estão se afastando da doutrina. Eu mesma me tornei muçulmana por questões de identidade étnica e cultural. Ela me entendeu e apoiou sem questionar ou  criticar. Ela era ecumênica e bebia de diferentes fontes para inspirar-se.

Ela pedia, em orações, a transformação da Igreja e agia, em sua pregação, para que isso acontecesse no caminho da cura, do perdão e da compreensão. O fluxograma e suas palavras de bom senso pautaram  minha trajetória profissional quando rompi com a ortodoxia econômico-financeira e passei a combater, com conhecimento de causa, as mazelas do sistema financeiro. Seus ensinamentos passaram a ser o “princípio norteador” de meu trabalho como economista, professora e ativista, apoiando as “lutas emancipatórias dos povos”.

Ao ler a Bíblia, do livro do Gênesis até “os Livros Proféticos”, ficou clara a mensagem do “Fluxograma de Marillac”: era necessária a ruptura. Sem a ruptura, não seria possível a transformação; desta forma, retornaríamos ao caminho da  dor (guerra e doenças) e não do amor (paz e cura). Parei por aí. Não me sentia capaz de continuar sem suporte. Aquilo estava me torturando.

Um mês depois dessa leitura, o papa Francisco nos brinda com a Encíclica Ecológica. Não acreditei no que li. Cada palavra soava como a fala de Maria do Carmo e seu fluxograma. Mesmo que ainda se mantenha o conservadorismo em relação a alguns tabus, ali estava o suporte de que eu necessitava para compreender a mensagem de minha amada tia, orientadora e matriarca da família.

Muito se tem escrito, analisado e debatido sobre a encíclica ecológica do papa Francisco (Laudato Si). Porém, aqueles que conheceram Maria do Carmo e com ela conviveram, entenderão a magnitude deste posicionamento para “aclarar as ideias” neste momento de crise econômica e sociopolítica mundial.

Maria do Carmo nos ensinou que, sem cura, o perdão não se sustenta, pois o ódio, a miséria e a tragédia se perpetuarão pela dor. 

Ao nos presentear com a encíclica ecológica, o papa Francisco nos convida à reflexão e valida o chamamento que já constava nas súplicas do coração amoroso e maternal de Marillac.

Em comunhão com os princípios de Marillac, a colega economista italiana Alessandra Smerilli, religiosa da Congregação Filhas de Maria Auxiliadora (salesianas), analisa o mais recente documento vaticano “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones”  que trata das economias e finanças de nosso tempo:

É um documento muito significativo sobre a perspectiva financeira ética e socialmente responsável. O fato de estar sendo tratado pela Congregação para Doutrina da Fé significa que viver uma finança coerente é matéria de fé, uma questão de coerência evangélica que está no coração da fé. Não é apenas um acaso ou acidente, não é secundário. Dá um incentivo muito grande para o desenvolvimento de uma perspectiva financeira que trabalha pela sustentabilidade e obriga as pessoas da Igreja a fazer um exame de consciência sobre a forma com que estão vivendo as finanças, que a finança pode ser uma coisa boa, que a economia é bela.

Se Maria do Carmo, desde menina, queria ser santa, esta “graça” se materializou nos novos rumos que a Igreja católica está tomando a partir das iniciativas do papa Francisco, especialmente nesses documentos.

Talvez o papa nunca venha a saber, mas ao nos guiar pelo amor, ele simplesmente reconheceu a santidade de Marillac!

Notas:

IESAI – Instituto de Educação para a Saúde Integral – http://iesai-piranguinho.blogspot.com.br/EEWB – Escola de Enfermagem Wenceslau Braz – http://www.eewb.br/

Irmãs da Providencia de GAP – http://www.providenciadegap.com/

Ecumênica: pessoa que respeita outras pessoas de diferentes credos ou ideologias. Cf. Dicionário Houaiss.

Referências:

Braga CG, Ribeiro AAA. As diretoras religiosas da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (1955-2016). REME – Rev Min Enferm. 2020[citado em];24:e-1276. Disponível em: DOI: 10.5935/1415-2762.20200005. Acesso em: junho de 2020. http://reme.org.br/artigo/detalhes/1422

SANTOS, João Vitor. Economia de comunhão é alternativa à voracidade de um mercado predador. Entrevista especial com Alessandra Smerilli. IHU On line. 02.06.2018. Acesso em: junho de 2020. < http://www.ihu.unisinos.br/579540-economia-de-comunhao-e-alternativa-a-voracidade-de-um-mercado-predador-entrevista-especial-com-alessandra-smerilli >

  VATICAN.  Carta Encíclica LAUDATO SI’ do Santo padre Francisco sobre o cuidado da Casa Comum, no dia 24 de Maio – Solenidade de Pentecostes – de 2015. Acesso em: junho de 2020. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

VATICAN. “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro. 17.05.2018. Acesso em: junho de 2020.  http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/05/17/0360/00773.html

Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e  Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras . É autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”. Acesse gratuitamente: http://amyra.lachatre.org.br

Veja em espanhol:

El “Flujograma de Marillac” y la economía de Francisco

Amyra El Khalili*

Ella quería ser santa. Desde niña, la vocación para la vida religiosa clamaba en su alma. Sóror Maria do Carmo Costa fue referencia para muchas comunidades por su sabiduría y serenidad, principalmente en la hora de la muerte. Por convicción, creyó em la medicina alternativa, en las plantas medicinales y terapías heredadas de pueblos indígenas y tradicionales, y con ellos aprendida.

Marillac era su nombre de bautizo en la Iglesia Católica. Fundó el Instituto de Educación para la Salud Integral (Iesai). Como enfermera religiosa, directora de la Escuela de Enfermería Wenceslau Braz (EEWB) y madre superiora de la Congregación de las Hermanas de GAP (Itajubá-MG), Ha trabajado para implementar la curación por el agua, las terapias preventivas y la buena alimentación agroecológica.

Antes de fallecer, acometida por el cáncer, me regaló un ejemplar de la Biblia. La dedicó con un mensaje:

“Mi querida Amyra ¡el mejor regalo para la fiesta de la vida es la Palabra de Dios! En ella encontrarás lo que tu corazón busca: paz, serenidad, sentido de la vida ¡el Amor Incondicional de Dios! Con cariño y amor, tu tía Sóror Maria do Carmo Costa. 16/07/2004”.

Y lo hice: en un momento de profunda angustia, sin saber por dónde seguir en esta caminada, resolví leer la Biblia sin el apoyo de clérigo o teólogo. Cuando empecé a leer el Génesis, me acordé del “Flujograma de Marillac”.

Maria do Carmo diseñó un flujograma para explicar las enfermedades de la humanidad en el plan material y espiritual y la transformación por la curación. Me decía: “Amyra, todo fue redimido, pero no todo fue sanado, ¡Cristo cayó en el fondo del pozo para que todos(as) caigan en él!”

Para Maria do Carmo, ese Dios no tenía género. Era padre/madre, providencia.

El “Flujograma de Marillac”, como denominé su gráfico proponía una Iglesia contemporánea, femenina, materna y comprensiva. Criticaba duramente la Iglesia católica por su postura patriarcal y conservadora. Para ella, esta es la verdadera razón por la cual tantos feligreses se alejan de la doctrina. Yo me volví musulmana por cuestiones de identidad étnica y cultural. Ella me entendió y me apoyó sin cuestionar o criticar. Era ecuménica y bebía de diferentes fuentes para inspirarse.

Pedía, en sus oraciones, la transformación de la Iglesia y actuaba, en sus prédicas, para eso sucediese en el camino de la curación, del perdón y la comprensión. El flujograma y sus palabras de sentido común han pautado mi trayectoria profesional cuando rompí con la ortodoxia económico-financiera y pasé a combatir, con conocimiento de causa, los males del sistema financiero. Sus enseñanzas pasaron a ser el “principio norteador” de mi trabajo como economista, profesora y activista, apoyando a las “luchas emancipatorias de los pueblos”.

Al leer la Biblia, desde el libro del Génesis hasta los “Libros Proféticos”, me quedó claro el mensaje del “Flujograma de Marillac”: se hacía necesaria la ruptura. Sin la ruptura no sería posible la transformación; así, retornaríamos al camino del dolor (guerra y enfermedades) y no del amor (paz y curación). Me detuve ahí. No me sentía capaz de seguir sin soporte. Aquello me estaba torturando.

Un mes después de esa lectura, el papa Francisco nos brinda con la Encíclica Ecológica. No podía creer en lo que estaba leyendo. Cada palabra me sonaba como hablaba Maria do Carmo y su flujograma. Aunque manteniendo el conservadurismo con relación a algunos tabúes, allí estaba el soporte que yo necesitaba para comprender el mensaje de mi amada tía, orientadora y matriarca de la familia.

Mucho se ha escrito, analizado y debatido sobre la encíclica ecológica del papa Francisco (Laudato Si). Sin embargo, quiénes conocieron Maria do Carmo y con ella convivieron, entenderán la magnitud de esta posición para “aclarar las ideas” en este momento de crisis económico y sociopolítica mundial.

Maria do Carmo nos enseñó que, sin curación, el perdón no se sostiene, pues el odio, la miseria y la tragedia se perpetuarán por el dolor.

Al regalarnos la encíclica ecológica, el papa Francisco nos invita a la reflexionar y valida el llamado que ya estaba en las súplicas del corazón amoroso y maternal de Marillac.

En comunión con los principios de Marillac, la colega economista italiana Alessandra Smerilli, religiosa de la Congregación Hijas de María Auxiliadora (salesianas), analiza el reciente documento vaticano “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” que trata de las economías y finanzas de nuestro tiempo:

Es un documento muy significativo sobre la perspectiva financiera ética y socialmente responsable. Por estar siendo tratado por la Congregación para Doctrina de la Fe significa que vivir una finanza coherente es materia de fe, una cuestión de coherencia evangélica que está en el corazón de la fe. No es sólo un acaso o accidente, no es secundario. Le da un incentivo muy grande al desarrollo de una perspectiva financiera que trabaja por la sustentabilidad y obliga a las personas de la Iglesia hacer un examen de conciencia sobre la forma como están viviendo las finanzas, que la finanza puede ser una cosa buena, que la economía es bella.

Maria do Carmo, desde niña, quería ser santa, esta “gracia” se ha materializado en los nuevos rumbos que la Iglesia católica está tomando a partir de las iniciativas del papa Francisco, especialmente en los citados documentos.

Quizás el papa nunca lo sepa, pero al nos guiar por el amor ¡simplemente reconoció la santidad de Marillac!

Versión en español: Beatriz Cannabrava

Publicado en Diálogos do Sul em portugués:

https://dialogosdosul.doud.com.br/mundo/52574/o-fluxograma-de-marillac-e-o-papa

Notas:

IESAI – Instituto de Educación para la Salud Integral – http://iesai-piranguinho.blogspot.com.br/EEWB – Escola de Enfermería Wenceslau Braz – http://www.eewb.br/

Hermanas de la Providencia de GAP – http://www.providenciadegap.com/

Ecuménica: Persona que respeta otras personas de diferentes creencias o ideologías. Cf. Diccionario Houaiss.

Referencias:

Braga CG, Ribeiro AAA. As diretoras religiosas da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (1955-2016). REME – Rev Min Enferm. 2020[citado em];24:e-1276. Disponible en: DOI: 10.5935/1415-2762.20200005. Acceso en junio de 2020. http://reme.org.br/artigo/detalhes/1422

SANTOS, João Vitor. Economia de comunhão é alternativa à voracidade de um mercado predador. Entrevista especial a Alessandra Smerilli. IHU en línea. 02.06.2018. Acceso en junio de de 2020. < http://www.ihu.unisinos.br/579540-economia-de-comunhao-e-alternativa-a-voracidade-de-um-mercado-predador-entrevista-especial-com-alessandra-smerilli >

  VATICAN.  Carta Encíclica LAUDATO SI’ do Santo padre Francisco sobre el cuidado de la Casa Común – 24 de mayo – Solemnidad de Pentecostés – de 2015. Acceso en junio de 2020. http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

VATICAN. “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones” Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro. 17.05.2018. Acesso em: junho de 2020.  http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/05/17/0360/00773.html

Amyra El Khalili es profesora de economía socioambiental y editora de las redes Movimiento Mujeres por la P@Z! e Alianza RECOs – Redes de Cooperación Comunitaria Sin Fronteras. Autora del e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”.

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